Pedro Góis voou sobre o Atlântico no dia em que desapareceu o avião entre Rio de Janeiro e Paris
Quando era forcado no grupo de Santarém rezava antes de entrar na arena. À frente de um Air Bus 330, na ligação Lisboa – Funchal, o piloto Pedro Góis prefere entregar o destino à técnica. Relato de uma viagem de um comandante ribatejano sobre o Atlântico no dia em que um avião desapareceu no mar entre o Rio de Janeiro e Paris.
E se um avião com mais de 200 pessoas a bordo desaparecesse do radar no dia em que tem uma viagem marcada? A probabilidade de ter um acidente seria mínima. “Era mais fácil ganharmos o totoloto cinco vezes cada um”, comenta o piloto da Sata Internacional, Pedro Góis, a meio da tarde de segunda-feira [dia em que desapareceu um avião de Air France que fazia a ligação entre Rio de Janeiro e Paris]. O comandante, 32 anos, retira o Mercedes da garagem de um prédio em Santarém, na zona do Sacapeito, enquanto sintoniza uma estação de rádio para ouvir as últimas notícias. Preocupa-se com a situação da aeronave que se apagou em “zona cega” de radar. Pedro Góis está a pouco mais de uma hora de ocupar o lugar de comandante de um Air Bus 330, que a bordo, saberá mais tarde, levará 127 passageiros de Lisboa ao Funchal.
No interior do avião - para lá da porta blindada que o separa de tripulação e passageiros desde o 11 de Setembro - assume a função de comandante ao lado de uma jovem loira de 25 anos. Diana Gomes da Silva está na condição de co-piloto. Pedro Góis é o seu instrutor. É a primeira vez que comanda um avião ao lado de uma mulher, mas é defensor da presença feminina. Em mais de 100 pilotos da companhia aérea onde trabalha apenas um profissional é do sexo feminino.
Antes de entrar no cockpit não há lugar a qualquer ritual. Ao contrário do que acontecia quando era primeira ajuda no Grupo de Forcados Amadores de Santarém. Rezava - antes de ajudar a enfrentar o toiro na arena. Sobre as nuvens prefere confiar os destinos não a Deus, mas à técnica da aviação civil. A prática quer-se apurada e por isso os profissionais são sujeitos a testes regulares de aptidão.
A descolagem do aeroporto de Lisboa é uma subida suave até alcançar as nuvens numa tarde de sol. Um voo tranquilo, com temperaturas amenas e sem a turbulência que por vezes perturba o trabalho do piloto - o homem que navega no ar em frente a dezenas de botões. Todos são precisos para monitorizar o aparelho. “É como se estivéssemos a fazer constantes electrocardiogramas”, compara o piloto.
Liga-se o piloto automático enquanto a aeronave voa a uma altitude de 36 mil pés. Entre a tripulação Pedro Góis sente-se em casa. Duas das hospedeiras têm ligações a Almeirim e Cartaxo. As tradições do Ribatejo são paixões que o piloto transporta hoje em viagens mais curtas, mas que já levou em longas rotas internacionais. Desde a civilizada Boston até a destinos edílicos, como Punta Cana ou Cuba.
E para destinos de luxo uma refeição à altura. Chacal é um chef à medida. A hospedeira de bordo volta a correr a porta blindada com um prato de peixe e de carne. Frente aos comandos do Air Bus o piloto opta pela segunda proposta. Rosbife, esparregado e arroz. Pudim para a sobremesa.
A hora da aterragem aproxima-se. Na pista do Funchal é uma operação particularmente complexa, mas que o piloto executa sem dificuldade. O voo de regresso processa-se sem demora. Já passa da meia-noite quando o piloto chega a um parque de estacionamento nas imediações da Portela. Um paso doble é o som que ecoa no telemóvel quando a mãe liga a saber do filho. Na viagem de regresso a Santarém o piloto veste a pele de repórter a fazer perguntas. Não fosse um engenheiro electrotécnico a frequentar um curso de psicologia aplicada, deslumbrado pelos meandros da mente. Acredita que aos 40 anos não é tarde para iniciar a carreira de psicanalista.
Santarém está adormecida quando o pai de Constança e marido de Catarina Góis alcança o destino. É na sua Santarém natal que o piloto de fato azul se transfigura para uma modalidade que também o apaixona a bordo do seu “Pitts Special” (é um dos pilotos que irá participar no Campeonato Nacional de Voo Acrobático que decorre de 4 a 7 de Junho). A cidade das Portas do Sol está banhada pela lua numa noite de Junho. E depois de uma viagem pelo Atlântico o bom filho retorna seguro a casa.