"Que seria desta gente se não fôssemos nós a aparecer-lhes no caminho?"
À deriva no Oceano Índico, junto à costa da Somália, a 21 milhas da costa, 25 milhas sudeste de Hobyo, quase sem combustível, sem comida, sem água potável, doridos das tareias que levaram.
São 14 homens, indianos, franzinos, fragilizados, sem comer há três dias, numa 'Dhow' carregada de carvão. A sua única preocupação era fugir da zona de costa, sabendo de antemão que com o combustível disponível chegariam a lado nenhum...
Como que encontrando uma agulha no palheiro, aparece-lhes pela frente um navio de guerra português, a Corte-Real, que nos últimos dias navega nestas águas sem se cruzar com vivalma.
Uma sorte. "Que seria desta gente se não fôssemos nós a aparecer-lhes no caminho?", desabafa o comandante da Corte-Real, António Alexandre.
A tripulação, natural de Gujarat, Índia, transportou arroz do Paquistão para Mogadíscio e foi recolher carvão a Bravo, para levar para Sarja, nos Emirados Árabes Unidos, perto de Dubai.
Missão arriscada
Ao fim de dois dias de viagem junto à costa da Somália -- região onde estão sequestrados vários navios e onde se encontra a Corte-Real -- a embarcação é atacada por piratas.
"Vieram, armados com metralhadoras, em 3 pequenas embarcações rápidas, uns seis por cada uma", explica à Lusa o comandante da 'Dhow', Ismael Abdurehman, sem saber precisar o número exacto de piratas. "Eram muitos, e eram violentos. Batiam-nos e não nos deixavam falar".
Roubaram tudo o que lhes interessava. Os 14 homens estão todos descalços, "os piratas levaram, juntamente com o telefone satélite, as nossas roupas, toda a comida, água, combustível e até as prendas que tínhamos comprado no shopping para levar para as nossas famílias", diz Ismael, ainda combalido dos dias difíceis que viveu a bordo.
A dada altura os piratas levaram a 'Dhow' até junto de costa. Ismael não sabe exactamente onde, mas aponta na carta de navegação a localidade de Hobyo, onde se encontra sequestrado um navio, o "Ariana".
Sexta-feira de manhã saltaram para as suas 'skiffs', levaram tudo o que queriam e abandonaram o "Vishvakalyan". A partir daí, rumaram em direcção contrária à costa, sabendo que tinham combustível para chegar a lado nenhum.
"Hoje de manhã, ao nascer do Sol, vi o navio de guerra português, não fiz nada, fiquei só à espera que viessem ter connosco, e felizmente aconteceu", explica o comandante do barco, uma espécie de nau, toda em madeira.
Ao longo dos dez dias sofreram muito. Os piratas empurraram dois para um espaço junto à ponte, e os outros para uma divisão muito reduzida, com movimentos limitados, num porão com cerca de um metro de altura, na proa.
Enquanto estiveram a bordo, os piratas comeram tudo o que havia, beberam toda a água potável, "gastaram com banhos" e maltrataram a tripulação ameaçando sempre que alguém perguntava alguma coisa.
Quando a fragata portuguesa detectou a embarcação, eram 06:45, tentou a comunicação mas tal não foi possível. Os piratas cortaram o cabo da antena do rádio VHF.
Foi então que teve de ir a bordo uma equipa de fuzileiros para apurar a situação daquela embarcação. E foi aí que perceberam a gravidade: sem alimentos, sem água potável, sem combustível.
Uma equipa de apoio médico foi imediatamente enviada para bordo da "Vishvakalyan" - a Lusa acompanhou esta equipa -- e iniciaram-se logo as consultas a cada um dos 14 marinheiros.
A maioria queixava-se de dores de cabeça e dores musculares, próprios de malnutrição, alguns desidratados, problemas respiratórios e alguns tinham mazelas que provavam terem sido agredidos fisicamente. Nenhum deles precisava de tratamento médico mais aprofundado, todos eles foram medicados e aconselhados pela equipe médica.
Enquanto o acompanhamento médico foi feito, militares portugueses iniciaram um longo processo de transferência de combustível da fragata para a 'Dhow'. No total, cerca de três mil litros de combustível, que juntamente com os cerca de mil litros que dispunham, permite que cheguem a Socotra, uma pequena ilha iemenita a norte da Somália, onde poderão reabastecer.
Os militares portugueses fizeram também toda a verificação do equipamento do navio, tendo sido reparado o sistema de rádio. O GPS funcionava e os motores também, dando garantias de que os marinheiros indianos poderão agora prosseguir a sua viagem depois deste grande susto.
Após a acção de auxílio da Corte-Real, o almirante Pereira da Cunha, que é quem comanda a força da Nato na região contra a pirataria, resumiria em poucas palavras o que foi feito: " Isto que fizemos é um dever, não é uma tarefa, ou uma missão".
Tem a ver com o código de conduta do marinheiro, que "nunca abandona outro marinheiro em dificuldades", afirmou o almirante português á agência Lusa.
Assim, a Corte-Real não abandonou a embarcação indiana enquanto não garantiu que os marinheiros estavam todos bem de saúde, com água, alimentos, e condições técnicas para navegar de novo com o seu rumo.
* Agência Lusa